Problema deve ser resolvido internamente pela escola, mas é preciso cuidado para não criminalizar alunos
Queixa comum entre alunos e professores, os furtos ocorridos dentro da escola agora têm números oficiais: quase 30% dos gestores de todo o país relataram casos de furtos a alunos e 16% a professores, realizados por pessoas da própria escola. Os dados são do questionário da Prova Brasil 2011, que foi respondido por diretores de mais de 56 mil escolas públicas brasileiras. Especialistas ouvidos pela Escola Pública explicam como docentes e gestores devem agir nesses casos e apontam os principais erros cometidos. E fazem uma advertência: os furtos precisam ser coibidos para evitar o clima de insegurança na escola, mas muitos desses "delitos" não deveriam ser enquadrados como furtos se analisados sob a ótica da criança.
Para a socióloga Miriam Abramovay, coordenadora do projeto Violência e convivência nas escolas brasileiras (parceria da Organização dos Estados Ibero-americanos, MEC e FLACSO), pequenos furtos ocorridos na escola se tornaram corriqueiros e foram banalizados. "Fiz três grandes pesquisas sobre o tema que se tornaram livros. Elas mostram que o furto não é associado à violência na escola", diz Miriam. E este é o grande mal: tratar o tema como algo pouco importante. Essa visão contribui para que a escola não crie regras claras que coíbam os furtos e trate cada caso de uma forma, o que aumenta a sensação de insegurança entre os alunos e cria um clima escolar ruim.
"Enquanto se chama a polícia para alguns casos de furto, não se leva a sério outros e até se culpa o aluno vítima do roubo, dizendo que foi ele quem não 'cuidou' de seus pertences. Isso gera uma sensação de impotência e uma falta de confiança no espaço escolar", explica Miriam.
Postura da escolaO conselho número 1 dado pelos especialistas é transformar o furto ocorrido em uma situação educativa. "Como se trata de uma escola, deve-se agir de modo educativo e não meramente especulativo e policialesco", diz Sonia Mari Shima Barroco, psicóloga escolar,
professora da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e coordenadora do projeto Enfrentamento da violência na escola, envolvendo a UEM, a Universidade Federal do Paraná e a Universidade Federal de Rondônia.
Miriam explica que cada escola deve ter suas regras e tentar resolver o problema internamente. "As regras devem ser claras, escritas, e criadas em consenso com os alunos após muitas conversas em que fique entendido o que é o furto, como quem é furtado se sente e como a ocorrência de furtos pode contribuir para que os alunos e a escola tenham problemas agora e também no futuro", diz.
Sonia lembra que quando os furtos se apresentam na escola, ou mesmo antes disso, é preciso trabalhar junto aos alunos, às famílias, aos funcionários e aos próprios professores conteúdos formativos sobre a vida em coletividade e a importância e os valores dessa convivência.
"Não se trata de temática isolada a ser contemplada em uma única turma ou série. Isso pode ser feito de diferentes maneiras, como, por exemplo, por meio da arte ou do uso de matérias informativas sobre a sociedade e a vida na atualidade", diz Sonia.
Roberto da Silva é professor da Faculdade de Educação da USP e foi conselheiro do Instituto Latino-Americano para Prevenção ao Delito e Tratamento da Delinquência (Ilanud), da Organização das Nações Unidas (ONU). Ele ressalta que o furto é um ato infracional e o diretor, segundo consta no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), é a autoridade competente no âmbito escolar para lidar com a situação - ouvindo o conselho de Escola e a Associação de Pais e Mestres. Para ele, deve-se sempre buscar a resolução interna do conflito e evitar a criminalização do comportamento da criança.
Pais, Conselho e PolíciaSonia recomenda que a escola comunique o fato ocorrido aos pais do aluno que cometeu o furto e que os oriente a respeito de medidas disciplinares educativas. Mas Miriam adverte que os pais devem ser chamados sempre com cuidado. "É preciso entender o contexto familiar do aluno antes. Saber se os pais têm o hábito de bater nele ou dar castigos severos, por exemplo, o que pode piorar o comportamento do aluno. Os pais deveriam ser aliados, mas a realidade é que há grande distanciamento. Primeiro, a escola deve tentar resolver, depois chamar os pais e, em último caso, o Conselho Tutelar", diz.
A ressalva a respeito de envolvimento do Conselho Tutelar é feita, em especial, para alunos mais novos. Segundo Miriam, encaminhar o aluno ao Conselho Tutelar é algo que o marginaliza diante dos outros, o que pode comprometer seu futuro.
Caso o autor do furto seja descoberto, Roberto Silva difere crianças e adolescentes na hora de decidir como a escola deve agir. Quando se trata de um aluno menor de 12 anos de idade, o caminho é comunicar aos pais, dar orientação e apoio e promover a assinatura de um Termo de Responsabilidade e supervisionar para que não haja reincidência.
"Se o Termo de Responsabilidade não for integralmente cumprido, pode-se impor aos pais a assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta, com prazo determinado, frequência e atividades a serem cumpridas. Somente a quebra dos acordos feitos no âmbito desse Termo de Ajustamento de Conduta justificaria a comunicação ao Conselho Tutelar", explica Silva.
No caso de furto cometido por adolescente de 12 até 18 anos incompletos, valem todos os procedimentos indicados acima, diz. "Se todas as tentativas de resolução pacífica do conflito forem infrutíferas, inclusive a interveniência do Conselho Tutelar, pode-se, segundo a realidade do município, acionar a Guarda Civil ou a Polícia Militar", explica. O professor ressalta que, caso se chegue a esse extremo, a escola deve se munir do máximo de informações que comprovem a autoria do fato (o flagrante, a acusação direta da vítima ou a posse do objeto do furto com o autor), a materialidade do fato (descrição detalhada do objeto do furto) e de prova testemunhal (ter duas ou mais testemunhas que reconheçam o autor e aceitem se identificar e testemunhar).
Já para Miriam, chamar a polícia para fazer um boletim de ocorrência é o pior que pode acontecer: "a polícia só deve ser chamada em situações muito graves."
Erros da escolaSurpreendidos pelo furto, muitos professores, diretores e mesmo inspetores costumam tomar medidas ineficientes e até inconstitucionais. A principal delas é tornar o fato público antes que se tenha apurado responsabilidades, o que ajuda a alimentar o clima de desconfiança, de insegurança e de "busca" por culpados, diz Silva. Segundo ele, há muita confusão de perda, extravio ou esquecimento com furto, o que provoca constrangimento geral e, ao final, se percebe que tudo não passou de um mal-entendido.
Silva condena também a aplicação de sanções ou punições coletivas, tais como a revista da mochila de todos os alunos e a suspensão coletiva de atividades. "Ambas ilegais, pois não existe no Código Penal nem no ECA a figura da 'punição coletiva', o que é clara violação do artigo 5º do ECA", explica.
Outro erro grave é a detenção de crianças e adolescentes em ambientes fechados da unidade escolar, tais como banheiros, despensa ou sala de direção, por mera suspeita, sem que haja qualquer determinação judicial, o que configura cárcere privado, menciona Silva. Assim como tentativas de imobilizar, amarrar ou algemar crianças e adolescentes até a chegada de autoridade policial, o que configura infração ao artigo 5º do ECA.
O preconceito é outra falha apontada por Silva - e não apenas ligado à cor da pele ou à aparência física. "Existe a culpabilização de alunos sobre os quais pesam certos estereótipos, principalmente o fato de ter cumprido ou estar cumprindo medida socioeducativa; ter pai, mãe ou outro familiar preso ou envolvido em atividades criminosas; morar em locais desfavorecidos socialmente, como cortiços, favelas e invasões; ou ser usuário de algum tipo de droga que cria dependência", diz Silva.
Miriam ressalta que a escola deve ser criteriosa e só acusar diante de certeza. "É preciso ter muito cuidado. Há casos em que um não gosta do outro e inventa que foi ele quem furtou", diz Miriam.
VigilânciaA instalação de câmeras nas salas de aula e em outros espaços da escola tem sido cada vez mais comum, mas é controversa. Sonia vê nas câmeras um lado positivo: "ante o contexto de violência que se processa fora e dentro da escola, constituem um fator inibitório e estratégia fundamental ao gestor", diz.
Já Miriam classifica a atitude como "lamentável". "Experiências internacionais mostram que quanto mais se tenta usar esse tipo de medida repressiva, mais os alunos tentam burlar esses mecanismos e conseguem. Quanto mais se sentem vigiados, mais querem aparecer e serem considerados os 'piores'. A cultura do espetáculo mexe muito com os alunos. Além disso, cria-se um clima de repressão dentro da escola, o que não é sinônimo de educação", diz Miriam.
Silva concorda. Segundo ele as câmeras - assim como chips de monitoramento remoto, grades por todos os lados, rígidos controles de entradas e saídas e seguranças uniformizados, sejam ou não policiais - são medidas de exacerbação dos mecanismos de controle social quando visam mais à vigilância do que à segurança de crianças e adolescentes. Todas essas medidas desconsideram códigos e valores próprios da infância e julgam e intervêm junto às crianças e adolescentes a partir de uma cultura adultocêntrica, explica.
MotivaçõesÉ preciso saber que crianças podem 'levar' coisas e não necessariamente entendem isso como furto, explica Sonia. É o que também afirma Roberto Silva: "a maioria dos 30% de furtos entre alunos identificados pelo MEC provavelmente não seriam interpretados como 'ato infracional' se fosse analisada de um ponto de vista estritamente pedagógico e não jurídico ou criminológico. A motivação para o ato não é nem a de empobrecimento do outro nem a de enriquecimento ilícito do autor", diz.
Ele explica que um menino pode usar seus apetrechos pessoais - tênis, boné, celular, MP3, etc. - para ostentar classe, riqueza e privilégio diante de outros e com isso levar vantagens com diretores ou professores, ter mais amigos e atrair a atenção das garotas. Esse aluno pode ser vítima de subtração desses bens, não porque outros meninos queiram deixá-lo 'mais pobre' e se tornarem 'mais ricos', mas simplesmente para equilibrar as regras do jogo na participação em grupos, e no exercício da liderança. Neste caso, diz Silva, a motivação não é de natureza criminológica, é própria dos jogos infantojuvenis. "Se o adulto próximo não entende a lógica de competição das crianças, vai intervir de forma inadequada, seja impedindo que eles exercitem e criem as próprias regras, aprendendo a negociar as diferenças e encontrando o ponto de equilíbrio nessas relações, seja simplesmente rotulando e, consequentemente, punindo como 'furto' comportamentos que nada têm a ver com a lógica consumista e possessiva da atualidade."
Silva frisa que adultos não gostam de ostentação e geralmente reagem de forma hostil, com inveja, sabotagem ou desprezo, por vezes chegando à violência, vingança e morte. "Crianças e adolescentes, em plena fase de desenvolvimento, talvez ainda vejam possibilidades de colocar essa 'competição' em termos igualitários simplesmente subtraindo do outro instrumentos, recursos, meios e objetos que os coloquem em vantagem na competição por afeição, participação e prestígio dentro de grupos da mesma idade. Interpretar e punir tal comportamento como crime é o próprio crime contra a lógica infantil", afirma Silva.
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